Academia de Medicina da Bahia Scientia Nobilitat
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Cipriano Barbosa Betâmio
Cadeira: 16
Patrono: Cipriano Barbosa Betâmio
Patrono

Mais que um surto epidêmico na Bahia, foi uma pandemia de Cólera Morbus. Curioso é esta biografia breve foi escrita num momento de pandemia pelo Covid 19 (vírus RNA). É hora de conhecer este patrono da Cadeira número 16 da Academia de Medicina da Bahia (AMBA) e patrono da Cadeira 8 do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins (IBHMCA). Herói, generoso homem de “coração angelical” e, com certeza, um dos primeiros médicos sociais ou médicos sanitaristas do país. Depois de escrever sua breve biografia, Dr. Irabussu Rocha se indagou: “Não será Cipriano Betâmio digno de ser considerado o exemplo, o paradigma, o herói, o primeiro dos sanitaristas brasileiros?” (Rocha, s/d apud CIPRIANO..., 2011)

Cipriano Barbosa Betâmio, nasceu em Salvador, no dia 3 de março de 1818 e se encantou em Santo Amaro, em 5 de setembro de 1855, com apenas 37 anos. Filho de Cristódia (ou Custódia) Maria Pires (depois acrescentou Betâmio) e Jerônimo (Jenuíno/Genuíno?) Barbosa Betâmio. Optamos pela referência de Antônio Brochado Príncipe (1955).

Ainda jovem, Cipriano se dedicou ao comércio, como Guarda-Livros, sendo aluno do seu pai, que era Lente (termo latim usado na época para “professor”) dando aula no curso de Comércio. Seus biógrafos dizem que, ao não ver futuro nesta área, resolveu fazer Medicina. Ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia, com quase 24 anos, em 1842, sob o número 9 de matrícula. (PRÍNCIPE, 1955)

Finalizou o curso em 30 de novembro de 1847, no sexto ano, com 29 anos. A “tese inaugural” para se formar em Medicina foi “A circulação nos vegetais e animais”. (BETÂMIO, 1847). Porém, ainda estudante publicou os seguintes trabalhos: “Fisiologia Geral” (1845) e “Secreção Fisiológica” (1846).

Ao se formar, foi proprietário de um estabelecimento de ensino particular em Salvador, situado próximo ao Forte de Pedro com a rua das Mercês (Avenida Sete de Setembro, 275). Em suas biografias, foi encontrado um colégio com seu nome: O “Colégio de Dr. Betâmio” tinha 30 meninos em primeiras letras, francês, inglês, geografia e geometria ...” Acredita-se que também exercia medicina no seu consultório particular, não sendo funcionário público. Bem, de modo historicamente rigoroso, não sabemos se exercia a medicina ou se era apenas proprietário do “Colégio Betâmio” (PRÍNCIPE, 1955). Nem mesmo sabemos se ele ensinava nesse Colégio.

A história pouco nos deixou sobre sua vida de novembro de 1847 até julho de 1855. Em 16 de maio de 1851, com 33 anos ele se casou com Felismina Augusta Pereira, já grávida de Cipriano Barbosa Betâmio, nascido em 8 de dezembro de 1851. Foram dois filhos, o outro foi Horácio Barbosa Betâmio, nascido em 11 de julho 1854, ano do encantamento do nosso patrono. O primogênito e xará Cipriano se formou em Medicina, como o pai e também faleceu muito jovem, em 1884, com 32 anos (PRÍNCIPE, 1955).

Em agosto de 1855, Cipriano resolve se apresentar voluntariamente no enfrentamento da epidemia de Cólera em Santo Amaro. Lá, os médicos negaram seus serviços, as autoridades desertaram seus postos, os escravos fugiram apavorados, os engenhos de açúcar fecharam suas portas, os maridos largaram as mulheres, as pais abandonaram os filhos e os cadáveres, às centenas, ficaram amontoados nas ruas (CIPRIANO..., 2011). Não sabemos bem a motivação declarada de Cipriano, intuímos altruísmo, solidariedade humana, dever cívico. Duas únicas frases, uma oral registrada, outra escrita e ambas, muito emblemáticas de Cipriano sobre aquela decisão. A falada: “Felismina, até a volta, se não for torta”. E para o Sr. Álvaro Tibério, Presidente da Província da Bahia, escreveu com plena consciência de seus riscos:

Senhor Presidente, fique certo que vou trabalhar sem descanso, vou tomar a dianteira dos trabalhos mais arriscados; não me lembrarei de minha vida, nada exijo em recompensa de meus sacrifícios, se o puder vencer, mas se sucumbir, V. Exa. e o governo olhem para meus filhos. (CIPRIANO..., 2011).

O médico Cipriano viajou para Santo Amaro em 29 de agosto de 1855, acompanhado de mais dois colegas, José Francisco de Azevedo Pena e Carlos Frederico Santos Xavier e de alguns estudantes de medicina. Pela carta do Presidente da Província da Bahia, talvez tenha tido outro médico, mas não temos registro. Eis um trecho da carta do Presidente da Província Álvaro Tibério para o Barão de Cotegipe, na qual ele registra o testemunho da coragem e do heroísmo de Betâmio:

Quando aqui chegavam as peiores noticias de Santo Amaro e todos se recusavam a seguir para lá, veio-se-me oferecer o Dr. Betamio, apesar de ter o seu colégio e grande família. Aceitei o seu oferecimento e fi-lo acompanhar de mais treis, e tendo o Dantas se retirado da cidade, o Matos que lá mandei o exonerou, nomeando o Betamio, o qual já como autoridade, já como autoridade, serviu a morrer...” (apud CIPRIANO..., 2011).

Chega, portanto, nomeado como Delegado de Saúde Pública na cidade de Santo Amaro às 19 horas do dia 29 de agosto de 1855 e uma hora depois do mesmo dia redige para o Presidente da Província este trecho de documento:

...O Delegado Dantas não está presente. Achei tudo na maior anarquia, não tivemos quem desembarcar a nossa bagagem porque tudo corria: os Drs. Bahia e Aducci afirmam-me que há 200 cadáveres por sepultar. Assumi a autoridade de delegado porque a pessoa que estava revestida desta autoridade era um estudante de segundo ano, João Philop Rastelli, que não mostrava a energia que a circunstância exigia. (apud CIPRIANO..., 2011).

No dia seguinte à sua chegada, 30 de agosto, com a jurisdição policial da cidade, como pode ser visto no texto acima, e, com apenas três escravos, iniciou a exumação de aproximadamente 300 cadáveres, amontoados nas ruas da cidade. Nesse dia, realizou nova correspondência:

Assim que amanheceu o primeiro dia em Santo Amaro empreendi a tarefa de enterramento ou queima dos cadáveres que jaziam pelas ruas, obstruíam a entrada do cemitério e estiravam uma considerável extensão pela parte de dentro daquele campo. [...] Tratei de apanhar os corpos que jaziam no interior da cidade, leva-los para a estrada do cemitério que estava obstruída com os cadáveres e já consegui queimar às seis da tarde oitenta corpos. Pretendo que hoje fiquem consumidos os que restam ou ao menos aqueles cuja decomposição se acha mais adiantada. (apud CIPRIANO..., 2011).

De todos os acontecimentos Betâmio dava ciência ao Presidente Álvaro Tibério e, pelos registros obtidos, este o apoiava em tudo que era possível. No dia 1º de setembro, trechos da correspondência para Álvaro Tibério foi assim: “O estado de Santo Amaro vai sendo mais lisonjeiro [sic], a confiança reaparece: o comércio vai-se abrindo e já transita por estas ruas de que se tinham apossados os mortos”. No entanto, registrou que o desafio
da pandemia continuava: “Hoje ainda estou embaraçado com mais 50 ou 60 cadáveres que deverão ser incinerados ou talvez sepultados”. (apud CIPRIANO..., 2011).

Como se deu a contaminação de Cipriano Betâmio? Nesse mesmo dia 1° de setembro de 1855, que ele celebra os avanços com a incineração ou enterro dos cadáveres, ocorreu a exposição ocupacional ao vibrião colérico desse médico mártir: “Já ao entardecer de primeiro de setembro, Betâmio retornava de mais uma incineração, e então era preso da cólera”, como escreveu seu principal biógrafo, Antônio Carlos Brochado Príncipe (1955). E acrescenta:

Contam que ao abrir garrafas que deviam conter Água de Labarraque, com que se desinfectasse, veio-lhe a surpresa de ser água o seu conteudo. Exclamou, então: “estou morto” e triste voltou à sua casa já transido do mal que o prostraria 4 dias depois. Nesse mesmo dia 1° era já grave o seu estado e às 4 1/2 da tarde de 5 de setembro de 1855 falecia o grande herói. (PRINCIPE, 1955)

Encantou-se Cipriano Betâmio, como está escrito acima, às quatro e meia da tarde de 5 de setembro de 1855 (CIPRIANO..., 2012), aos 37 anos, deixando esposa, dois filhos e mais dois parentes que moravam com a sua família. Como já registrado, o 1º filho, Cipriano se forma em Medicina no Rio de Janeiro e morreu com 32 anos de idade. Seu 2º filho, Horácio, se formou em Direito. A família recebeu do governo a pensão anual de 1:600$00 e da Associação Comercial da Bahia, doou a quantia única de 400$00.
A suposta ossada de Cipriano é transferida de Santo Amaro para Salvador em fevereiro de 1873 e depositada no Cemitério do Campo Santo, estando à frente dessa empreitada, o seu filho Cipriano Betâmio, naquele momento com 21 anos, cursando o 5° ano de medicina.

A Grande Cruz de madeira posta num largo (Largo da Cruz) próximo à Praça do Rosário, em Santo Amaro, onde supostamente faleceu Cipriano Betâmio, era uma homenagem a ele. Entretanto, um braço da Cruz soltou no dia 24 de fevereiro de 1940 e foi retirada totalmente, colocando-a no depósito dos “Trilhos Urbanos”. Há uma possibilidade de ter sido depois colocada uma lápide de baixo relevo no local em que ficava a Grande Cruz.

Como testemunho que Cipriano Betâmio está encantando, vivendo na eternidade da memória, em Santo Amaro, na Praça da Purificação, número 87, foi denominada a escola municipal com seu nome, em 15 de janeiro de 1946. Ainda no município de Santo Amaro, existe uma rua com o nome “Rua Cipriano Betâmio”, próxima ao Largo da Cruz, homenagem feita em 4 de maio de 1948. Há também uma rua Cipriano Betâmio em Salvador, no Subdistrito da Vitória, nome dado em agosto de 1955.

Outro destaque para o encantamento de Cipriano Betâmio está na homenagem histórica feita pelo Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins (IBHMCA) ao nomear como Patrono da Cadeira número 8, que tem agora como Titular, um dos autores deste texto, o Prof. Eduardo José Farias Borges dos Reis. A homenagem da Academia de Medicina da Bahia (AMBA) foi dar seu nome como Patrono à Cadeira número n. 16, que teve como Titulares Menandro Novais, Antônio Carlos Peçanha Martins e o Titular atual é Luiz Cláudio Lemos Correia.

ANEXO 1
Breve história das Epidemias no Brasil e na Bahia: do Achamento pelos Portugueses até meados do século XIX

Com a chegada dos colonizadores portugueses no Século XVI, na linha do tempo, tivemos as seguintes epidemias:

  • 1552: eclodiu a primeira epidemia na Bahia, uma gripe denominada “tosse-geral”, no governo de Tomé de Souza;
  • 1559 a 1561: a epidemia chamada de “Câmaras de sangue”, uma disenteria que também foi chamada de “priorizes”, depois “melanconia” e até “doença imaginária”;
  • 1562: já no governo de Mem de Sá, a varíola (“peste das bexigas”). Ela foi a pior de todas as epidemias até aquele momento;
  • Século XVII (1601-1700): “Epidemias do senhor”, era mais uma vez a varíola; sem a data precisa, as Febres “malinas” ou malignas, provavelmente era febre tifoide;
  • 1685: a epidemia de Febre amarela, a “bicha”, assim denominada “pelo voraz e apressado de seu golpe, narrou o historiador Rocha Pita” (FRANCO, 1969, p.21) teria começado em Recife, com uma nau francesa vinda da Ásia (Golfo do Sião). Outra hipótese, mais frágil, teria vindo da África (Cabo Verde). A “bicha” chegou na Bahia em 4 de abril de 1686, de modo intenso, quando tivemos a ação exemplar da primeira enfermeira brasileira, Dona Francisca de Sande. Acreditando que forma as preces para São Francisco Xavier que conteve a epidemia, a população pressionou a Câmara que aprovou o santo como Padroeiro da Capital da américa Portuguesa. Em 3 de novembro de 1687, D. Pedro II aprovou São Francisco Xavier como o padroeiro. (FRANCO, 1969, p.22-23)

Temos um salto no tempo que será de 1701-1800, o século XVIII, os autores ficaram devendo estas informações.

  • - 1849: tivemos novamente epidemia da febre amarela. Em Salvador, no dia 30 de setembro, veio a “bicha” no navio estadunidense “Brazil”. Houve mais uma vez negligência das autoridades com as medidas de quarentena. Em 3 de outubro, Dr. John Paterson, um dos destaques da “Medicina tropicalista”, fez o primeiro diagnóstico da doença. (FRANCO, 1969, p.24) Houve refutação pelos “Não contagionistas”, mas Dr. Otto Wucherer, português do Porto de ascendência holandesa e alemã, e também membro da “Medicina Tropicalista”, fez a autópsia em 17 de novembro de 1849, saindo o resultado em 17 de janeiro de 1850 confirmando ser um caso de febre amarela.

    Publicaram no jornal Correio Mercantil um protesto contra o Conselho de Salubridade, que declarou ser a moléstia leve e não contagiosa, então o Presidente da Província fez em 18 de janeiro uma reunião no Palácio do governo.

Nessa reunião fomos acusados com veemência de ter divulgado um pânico sem necessidade. Como queria esquecer muitas das cousas lá ouvidas, se as nossas opiniões [dele e dos irmãos Paterson] tivessem sido aceitas; mas isso aconteceu somente mais tarde, quando o Maranhão se defendeu contra a febre-amarela com medidas de quarentena durante meses”. (Wucherer publicou em 1857 na Revista Schmid’s Iahrbucher. Apud FRANCO, 1969, p. 26).

Vale registrar que houve apoio de alguns lentes e médicos como Remédios Monteiro e João Baptista dos Anjos, além de Antônio José Alves e outros médicos que iriam formar a Medicina Tropicalista, criando a Associação de Facultativos e a revista Gazeta Médica da Bahia em meados da década de 60 do século XIX. Por outro lado, constata-se mais uma vez que os negacionistas são pródigos em fazer estrago com a saúde da população, sobretudo mais pobre.

Wucherer usou sua própria casa como enfermaria e lá perdeu a própria esposa: “Entraram lá 20 doentes e saíram 21 cadáveres, incluindo o de minha esposa” (apud FRANCO, 1969, p. 26).
Pandemia de Cólera:

  • - 1855: ainda no Século XIX, será a vez da terceira e maior pandemia do século. O “cólera morbo”, vindo da Índia, onde era endêmica, pois teve início em Bangladesh em 1817,e tomou duas rotas:

Na Rússia, registra-se mais de um milhão de mortos. Em Londres num único ano ceifou mais de 10.000 vidas, chegando a mais de 23.000 mortes em toda a Grã-Bretanha. (PANDEMIA..., 2020) Quando o cholera morbus chegou ao Brasil, em 1855, o médico social e sanitarista inglês John Snow, já havia feito a grande descoberta do meio de contágio, que era a água contaminada na cidade de Londres, e depois o pesquisador alemão Robert Koch, um dos criadores da microbiologia, já havia identificado o vibrio cholera, uma bactéria como causadora da doença. (FRIEDMAN; FRIEDLAND, 2006).\

Fonte: A Case of True Cholera. London: March 1832. print: lithograph, color. NLM Unique ID: 101393491. Image A021858 from the History of Medicine (IHM)
Fonte 1: FABRE, Antoine François Hippolyte. Némésis médicale illustrée, recueil de satires. Paris, Bureau de la Némésis médicale, 1840.[Imagens da História da Medicina – IHM: (Imagem A026986) [NLM Unique ID: 57330670R.]. Fonte 2: J. Roze sc. Paris: Chardon ainè et fils. 1 print: engraving. [NLM Unique ID: 101392758] .[Imagens da História da Medicina – IHM: (Imagem A021109 ]
Fonte: Quadro do pintor russo Pavel Fedotov (1815-1852).
Fonte: Harper's Weekly. New York, 01 Ago. 1885. NLM Unique ID: 101416858 Image B029588 from Images from the History of Medicine (IHM). Gravura impressa.

Pandemia no Brasil e em particular na Bahia A pandemia chegou ao Brasil, portanto, em meados de 1855, e causou mais de 200 mil mortes. Embora tenha sido brutal na senzala, chegou também à casa grande. Iniciou na província do Pará, em 20 de junho de 1855: “Aportou em Belém, vindo da cidade portuguesa do Porto, com o navio Defensor, trazendo consigo o cólera-morbo” (CÓLERA-MORBO..., 2016). Chegou ao extremo-sul em novembro de 1855 a bordo do paquete Imperatriz que saiu do Rio de Janeiro com destino ao porto gaúcho. Durante a viagem a doença acometeu pelo menos 16 passageiros, que morreram no caminho, antes de aportar na Ilha do Desterro (atual Florianópolis). Os corpos foram jogados ao mar. O mais grave, ilustrando que o negacionismo tem história pregressa neste país, no desembarque, de modo negligente, os passageiros não ficaram detidos para quarentena, como recomendavam as medidas preventivas em todos os portos, e dentre eles alguns já portavam o vírus, que disseminou a doença. (PANDEMIA..., 2020) Em Porto Alegre, essa pandemia de cólera morbus matou 10% da população: 1.405 pessoas, numa população que mal ultrapassava os 15 mil habitantes. Outras cidades mais atingidas foram Rio Grande (485 vítimas) Pelotas (446) e Jaguarão, com 329 mortos. Ao todo foram quatro mil mortos no Rio Grande do Sul, segundo estatísticas oficiais que se acredita sejam incompletas. Para exemplificar a pandemia na casa grande no Rio Grande do Sul, registre-se a morte da esposa e da filha de 15 anos do Visconde da Graça. O Visconde anotou em seu diário “E eu mísero pai e infeliz marido, aqui fiquei nesta terra de angústias e de enganos sofrendo os martírios inerentes à frágil humanidade”. (PANDEMIA..., 2020)

Agora, como a pandemia chegou na Bahia. Em Salvador, chegou no dia 21 de julho de 1855, indo para o interior em 3 de agosto, afetando o município de Santo Amaro no dia 14 de agosto. Cabe registrar que membros do “Colégio Médico-Cirúrgico”, naquele momento já renomeado para Faculdade de Medicina da Bahia (1932), já haviam divulgado recomendações preventivas para se evitar que a pandemia do cólera chegasse à cidade do Salvador. As recomendações datavam de 1833. (BRITTO, 2010) Vinte e dois anos depois a pandemia atinge a população dessa cidade.

Na capital, eclodiu “na povoação do Rio Vermelho, alastrando-se, no mesmo dia, para as imediações do convento do Carmo, na freguesia de Santo Antônio Além do Carmo” (BRITTO, 2010). Dois dias após, vitimou duas mulheres na freguesia de Santana, na Rua do Castanheda, avançando para as freguesias da Vitória, Itapagipe, Itapuã e outras.

Em Salvador, foi importante o rio Camorugipe na disseminação da epidemia, cuja corrente recebia pelo Rio das Tripas todas as imundices da capital da província. Cabe registrar que o presidente da Província, com o objetivo de organizar racionalmente as ações, fez uma reunião com os mais prestigiados médicos, entre eles muitos professores da Fameb. Formaram-se dois campos: os contagionistas: com destaque para os médicos estrangeiros, em especial John Paterson (Patrono da Cadeira n. 12 do IBHMCA) e Otto Edward Wucherer (Patrono da Cadeira 11 do IBHMCA e da Cadeira 38 da AMBA) e os Professores da Fameb Antônio José Alves, o pai do poeta Castro Alves (Cadeira n. 9 do IBHMCA), Malaquias Álvares dos Santos (Cadeira n. 7 do IBHMCA) que afirmaram a doença se tratar de cólera, uma moléstia muito contagiosa. Eles estavam antenados com as descobertas de Snow e Koch. Do outro lado, os não-contagionistas, como os médicos

Salustiano Souto, Aranha Dantas, Policarpo Cabral), ainda aprisionados na teoria miasmática. Neste aspecto, fica demonstrado o cuidado da escolha dos patronos na Academia e Instituto da Medicina.
Entre as medidas sugeridas, sobretudo pelos “médicos tropicalistas” Paterson, Wucherer e Alves, e adotadas pela Comissão de Higiene Pública, destacou-se a instalação de 27 Postos Sanitários na Bahia. Médicos, muitos deles também Professores foram indicados como Delegados de Saúde na capital e nos diversos municípios atingidos pela pandemia.

Um desses Postos Sanitários foi o de Santo Amaro, que teve Cipriano Betâmio como delegado. Nesse município, palco de tantos protagonismos históricos e culturais, outros personagens tiveram papéis ativos contra a epidemia de cólera, como as Irmãs de Caridades e os jovens Estudantes da Faculdade de Medicina da Bahia.

Nessa pandemia morreram em torno de 40 mil baianos, dos quais 5 mil de Santo Amaro numa população de 8 mil pessoas, embora muitos mortos tenha sido de fora como Betâmio.
Cabe registrar que a Faculdade de Medicina da Bahia (FMB, sigla; Fameb, acrônimo), escola mater da medicina brasileira, já vinha, a pedido do Governo Provincial, debatendo medidas preventivas de quarentenas e limpeza urbana quanto às possibilidades de epidemias. A FMB suspendeu as suas atividades em 4 de setembro de 1855, retornando somente em 14 de novembro daquele mesmo ano.

Dois professores da Fameb faleceram no enfrentamento da pandemia de Cólera: Pedro da Fonseca Mello e Justino José Soares. Alunos da Faculdade que faleceram foram 11 (onze):

- Euclides de Barros Seixas, José Rebello de Figueiredo e Francisco José de Medeiros, do 2º ano do curso médico;
- Alcebíades Firmo Botelho, do 3º ano; - Elpídio Canuto da Costa, Américo Silvestre de Faria e José Ribeiro de Carvalho, do 4º ano; - Antônio Cardoso, do 5º ano;
- Joaquim da Costa Chastinet e Antônio Vaz de Carvalho, do 6º ano. (JACOBINA et al., 2008)

Três professores da FMB se destacaram no enfrentamento da pandemia e dois receberam homenagens especiais:

- Prof. José de Góes Silveira (1816-1874), que atuou como inspetor de saúde pública e, no ano da pandemia, tornou-se lente de Patologia Geral; tendo sido homenageado com a outorga do título de Comendador da Ordem da Rosa por serviços prestados durante a epidemia em 1855;
- Prof. Antônio de Cerqueira Pinto (1820-1895), Professor Substituto em 1855, depois Lente de Química Orgânica;
- E Prof. Joaquim Antônio de Oliveira Botelho (1827-1869), que prestou, como médico enviado pela Comissão de Higiene Pública, serviços em Cachoeira. Depois, ele também se tornaria lente de Matéria Médica e Terapêutica (de 1861 a 1869) e teria participação destacada na guerra do Paraguai. Ele foi condecorado com a medalha de ouro oferecida pela população da cidade de Cachoeira pelos serviços prestados durante a epidemia;

Os três Lentes foram alunos da Faculdade de Medicina da Bahia: Góes Siqueira se formou em 1840, Antônio Pinto em 1842 e Joaquim Botelho em 1850. (AZEVEDO, 2008; JACOBINA et al., 2008)

Post Scripitum
Quantos Ciprianos existiram na atual pandemia de Covid-19? Na página do CFM, até o dia 5 de junho de 2022, 893 médicos faleceram no enfrentamento da pandemia, sendo 37 médicos baianos. Alguns cometeram a estupidez de adotar um “tratamento precoce”, que não tinha respaldo científico e/ou negar a vacina e as outras medidas de prevenção primária (distanciamento físico, uso de máscaras, ir para atos políticos negacionistas, onde se amontoaram e adquiriram o vírus e depois, mesmo com muito dos recursos disponíveis, morreram). Porém uma parcela expressiva deste quase mil mortos, eram as pessoas que estavam atuando no front do combate a pandemia, como Betâmio esteve em Santo Amaro, e se “encantaram”.
Sim, como nos ensinou o médico e escritor mineiro João Guimarães Rosa: “as pessoas não morrem, ficam encantadas”. E Ronaldo Ribeiro Jacobina, um dos autores, acrescentou: “As Pessoas - com “P” maiúsculo - não morrem, ficam encantadas nos Corações, na Memória”.

REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Eliane de Souza e. Bicentenário da Faculdade de Medicina da Bahia - Terreiro de Jesus: Memória Histórica 1996-2007. Feira de Santana-BA: Editora da Academia de Medicina de Feira de Santana, 2008.
BRITTO, Antonio Carlos Nogueira. “Cholera Morbus Pestilencial”. In: BRITTO, Antonio Carlos Nogueira. A Medicina baiana nas brumas do passado. Século XIX e XX. Aspectos inéditos. Salvador: Contexto e Arte Editorial, 2002. p.217-225
BRITTO, Antônio Carlos Nogueira. Dr. Jonathas de Freitas Pedroza: dos bancos da Faculdade de Medicina da Bahia, do Terreiro de Jesus, Bahia, Brasil, à cadeira de Governador do Estado do Amazonas, Brasil (1913-1917). Gazeta Médica da Bahia, Salvador, v. 133, n. 2, maio-jul. 2010.
CIPRIANO Barboza Betâmio (Cipriano Betâmio). Médicos ilustres da Bahia e de Sergipe, Salvador, 21 de janeiro de 2011. Disponível em:
. Acesso em 20 jun. 2022. [Geraldo Leite] CIPRIANO Betâmio. Filhos ilustres da Bahia. Salvador, terça-feira, 25 set. 2012. Disponível em:< http://ilustresdabahia.blogspot.com/2012/09/cipriano-betamio.html > Acesso em 12 jul. 2022 CÓLERA-MORBO: contágio ou infecção? Blog de HCS-Manguinhos. Disponível em: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/colera-morbo-contagio-ou-infeccao/. Acesso em: 8 Jul. 2022. Rio de Janeiro, 2016.
FRANCO, Odair. História da Febre amarela no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde. Departamento Nacional de Endemias Rurais. 1969.
FRIEDMAN, Meyer; FRIEDLAND, Gerald W. As dez maiores descobertas da Medicina. São Paulo: Companhia de Letras, 2006.
JACOBINA, Ronaldo Ribeiro et al. A Faculdade de Medicina da Bahia e a epidemia de cólera, em 1855. Gazeta médica da Bahia, Salvador, v. 78, n. 1, p. 11-23, Jan-Jun.2008.
MENDES, Jayme de Sá. Cipriano Betâmio e 1º centenário da epidemia de cólera morbo de 1855 na Bahia. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 14, n.2/4, p. 253-262, abr./dez. 1987.
NOVAES, Menandro. Cipriano Barbosa Betâmio. A Purificação de um Apóstolo, Mártir e Herói. Anais da Academia de Medicina da Bahia, Salvador, v.3, p. 61, jun. 1981.
PANDEMIA de cólera morbus em Porto Alegre, em 1855, A. Jornal Já On Line. Porto Alegre - RS, 11 abr. 2020. Disponível em: https://www.jornalja.com.br/ambiente/em-1855-a-pandemia-de-colera-morbus-matou-10-da-populacao-em-porto-alegre/ Acesso em : 8 de junho de 2022. [História Ilustrada de Porto Alegre e História Ilustrada do Rio Grande do Sul/Jornal JÁ Editora]
PRÍNCIPE, Antônio Carlos Brochado. Cipriano Betâmio, Herói Infatigável: contribuição para sua biografia. Salvador: Era Nova, 1955. 40p.
REIS, Eduardo José Farias Borges dos. Cipriano Betâmio: um sacrifício pela vida em tempos de pandemia. Discurso proferido na posse como Membro Titular da Cadeira n. 8, Patrono Cipriano Barbosa do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins (IBHMCA). Salvador, 9 de junho de 2022.


RONALDO RIBEIRO JACOBINA*
Professor Titular de Medicina Preventiva e Social – DMPS-FMB-UFBA(PROPAP)
Titular da Cadeira 29 – Patrono Júlio Afrânio Peixoto - AMBA
Titular da Cadeira 7 – Patrono Malaquias Alvares dos Santos - IBHMCA
Coordenador didático da Disciplina História da Medicina (MED B92)
EDUARDO JOSÉ BORGES FARIAS DOS REIS**
Professor Titular de Medicina Preventiva e Social – DMPS-FMB-UFBA
Titular da Cadeira 8 – Patrono Cipriano Betâmio - IBHMCA
Coordenador Geral da Disciplina História da Medicina (MED B92

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