Academia de Medicina da Bahia Scientia Nobilitat
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Gilson Soares Feitosa
Gilson Soares Feitosa
Cadeira 36
10/05/2004
20:00
Discurso de Posse na Academia de Medicina da Bahia de Gilson Soares Feitosa

Srs. Acadêmicos, minhas senhoras e meus senhores:
Ao tempo em que me proporcionais o atingimento da culminância da minha vida de Médico, adentrando-me neste silogeu maior da Medicina baiana, levando-me assim a uma insuperável sensação de felicidade, trazei-me vós, senhores acadêmicos, com vossa generosa ação e acolhida, o desejo de arrostar o futuro, com a determinação e o empenho necessários, a quem pretende se ombrear aos seus mestres e ídolos.

Minha vinda para a Academia de Medicina da Bahia teve o incentivo, manifestado por amável intimação, da Professora Maria Tereza Pacheco. Essa figura de brilho invulgar, intrépida guerreira, presenteada à Bahia pela terra dos marechais, fugindo assim dos laços afetivamente cativantes de sua mãe, e seguindo o caminho sobraçada aos desígnios idealizados por seu pai, que para ela não desejava menos que o melhor, e o melhor era, então, o ensino médico na Bahia, ainda que, para tanto, uma distância apenas percorrida sob os inconvenientes de verdadeiro périplo, em vapor do mar, ou por dia e meio de jornada em trem, desde Própria-via Penedo-, a mantivessem à distância do seu aconchego.

Foi, assim, o estímulo dessa figura notável, durante o exercício de sua, - por outras ações, mais meritória- profícua gestão como Presidenta desta insigne Academia, que me levou a submeter-vos à consideração, o meu currículo e parte dos meus trabalhos sobre a Cardiopatia Reumática.

Agradeço-vos a unanimidade da aprovação, assim como, representando-vos em minha acolhida, o privilégio da escolha do vosso Presidente, o Professor Tomaz Cruz, esse paradigma admirado por toda uma geração de sergipanos, que, pelo sucesso do seu desempenho no Curso Médico, proporcionava aos seus conterrâneos mais jovens o desejo de seguir-lhe os passos.

Confessadamente avesso ao imprevisto, do tipo que colhe informações antes da visitação a uma nova cidade, ou das obras de um museu, que estuda mapas antes de se lançar no caminho, pus-me então a pesquisar a Academia de Medicina da Bahia, tanto nos seus aspectos históricos, como, e principalmente, quanto às sua situação atual e perspectivas.

A Academia de Medicina da Bahia foi fundada em 10 de julho de 1958, por ação capitaneada pelo Dr. Jayme de Sá Menezes, auxiliado na engendração do processo pelo Prof. Dr. Urcício Santiago e pelo Dr. José Ramos de Queiroz.
Compreendi, numa análise circunstanciada do assunto, feita pelo Prof. José Silveira, o significado da sua criação relativamente tardia, haja vista que em outros centros, que nem de longe faziam por merecer a primazia de tal empreendimento, em comparação ao reconhecido prestígio alcançado pelos que compunham o cenáculo do berço da medicina brasileira, a medicina da Bahia, já o tivessem feito há muito mais tempo. Instruí-me que tal se deveu à própria pujança da Faculdade de Medicina da Bahia, única à época, e onde seus lentes, em reuniões memoráveis, constituíam a essência de um verdadeiro sodalício acadêmico.

Os tempos mudaram, as características da atuação médica na Universidade se distanciaram algo do cerne do que é afeito ao modus faciendi de uma Academia, e, em 1952, surgiu uma outra Escola de Medicina, a Bahiana, fatores estes que se somaram para impulsionar a idéia, já em germinação, da criação desta Academia de Medicina da Bahia, “como um conjunto de ilustres médicos que formam um órgão de cúpula promovendo a consagração dos a quem coube a distinção do trato da cultura, na elaboração do pensamento, na profundidade e filosofia do saber”, repetindo as palavras de Sá Menezes; ou, segundo Boaventura, “um espaço privilegiado da palavra” ou, como diria Amato, “onde se deva zelar pela cultura médica”, ou, ainda, dada a excelência dos quantos a compõem e seu aspecto multifacetado de conhecimento especializado, na concepção de Macedo Costa, durante o seu discurso de posse na Presidência, “...alem disso, servindo à comunidade, quando por ela solicitada, ou mesmo tomando a iniciativa de ir ao encontro dos seus magnos problemas médico-sociais”. 

Louvável ação aquela, a da criação da Academia de Medicina da Bahia! Dos 40 patronos, aos 72 titulares que vieram sucessivamente a ocupar as 40 cadeiras existentes, nesses 45 anos desde sua fundação, tem-se um quadro exemplar de expoentes da Medicina, que confirma por si mesmo uma outra finalidade não anunciada para a Academia , aquela de servir de modelo para as gerações do presente e as futuras.

Embeveci-me ao ler, com atenção, a obra completa dos 12 volumes dos Anais da Academia de Medicina da Bahia, onde me foi permitido perscrutar os meandros da Medicina dos últimos cem anos. Concluí por tratar-se de uma obra que deveria ser difundida amplamente, por indispensável na construção do conhecimento dessa atividade fundamental à sociedade- a Medicina-, e ao seu ideário.

Chego assim, sem a chance do imprevisível, senão com a grande antecipação do deleite da convivência futura, para ocupar a Cadeira 36, que tem como Patrono a figura exponencial do Professor Menandro dos Reis Meirelles Filho e como seu primeiro titular, a do eminente Professor Raymundo Nonato de Almeida Gouveia. Do Patrono da Cadeira, Professor Menandro dos Reis Meirelles Filho, nascido a 24 de dezembro de 1876 e falecido a 20 de março de 1947, já se referiu extensivamente o Professor Almeida Gouveia, no seu discurso de posse, com o benefício de ter sido seu aluno, e ter podido, com essa convivência, captar a essência do seu significado e contribuição para a Medicina da época, e assim transmiti-la aos presentes à sua alocução, e, indelevelmente, fazê-la registrar nos Anais desta Academia.

Valho-me de suas anotações para destacar alguns pontos e, por consultas variadas, registrar alguns outros.
Seu pai era o insigne secretário da Faculdade de Medicina da Bahia, Dr. Menandro dos Reis Meirelles e sua genitora a Sra. Hermelinda Isbela da Silva Meirelles. Graduou-se em Medicina, em 1898. Assumiu a Cátedra da Clínica Obstétrica da Faculdade de Medicina da Bahia em 1915.

Foi um dos fundadores, e Diretor, da Maternidade Climério de Oliveira, que tem cumprido extraordinário papel na formação de uma plêiade notável de obstetras através de todos esses anos. Uma demonstração da sua valia encontrei em meio às anotações do minudente historiador da Medicina Bahiana, o Dr. Antonio Carlos Nogueira Britto, quando este documenta o ocorrido ao tempo do incêndio que destruiu a Biblioteca da Faculdade de Medicina da Bahia, em 1905: “Da importante biblioteca da Faculdade, destruída, não escapou um só volume, sendo queimados 22 mil volumes. Doações de livros, teses, revistas, jornais e folhetos foram feitas de imediato, registrando-se como os primeiros doadores os Drs. Pacheco Mendes, Menandro Meirelles Filho, viúva Koch e outros”. Tal atitude, que poderia ter sido largamente olvidada, assim como muitas ações de qualidade facilmente o são, não fosse o seu resgate histórico, na realidade revela o espírito solidário, comprometido com a Faculdade da Medicina, do patrono desta cadeira, o Professor Menandro Meirelles Filho.

Aperfeiçoou seus conhecimentos em viagem de estudos à Europa e os aplicou quando do seu retorno, havendo publicado diversos trabalhos sobre a temática obstétrica. Notabilizava-se pelo caráter prático do seu ensino.
Deixou uma linha descendente de notáveis.
Foi Diretor do Hospital Santa Izabel, da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, quando realizou primorosa administração, promovendo uma reforma administrativa de efeitos benéficos duradouros e criando o primeiro Curso de Enfermagem da Bahia, havendo, para tanto, trazido enfermeiras contratadas no estrangeiro e motivado a inserção de jovens de nível social mais elevado, contrariando o hábito vigente.
Vivo fosse hoje, certamente muito haveria de regozijar com o ver perpetuar-se a sua contribuição aos destinos da Santa Casa observando dois dos seus netos, numa coincidência notável, ocuparem a posição de atual Provedor da Santa Casa, o Dr. Eduardo Meirelles Valente e a de Ex-Provedor, seu antecessor imediato, o Dr. Álvaro Conde Lemos Filho. E ficaria orgulhoso do quanto têm feito para o engrandecimento desta mais que quadricentenária instituição, em cujo recôndito germinou e desenvolveu-se a Medicina Brasileira. Dessa forma vê-se que, por várias maneiras, o Professor Menandro Meirelles Filho nos deixou um grande legado. Agiu, assim, com a consciência de que “a natureza concedeu aos grandes homens a faculdade de fazer e aos outros, a de julgar”, situando-se, por certo, entre os primeiros.

O Professor Raymundo Nonato de Almeida Gouveia nascido a 19 de outubro de 1907, teve uma longa e profícua vida, vindo a falecer em 08 de abril de 2002.
Foi tal a intensidade de suas ações na área médica nos campos da Medicina Assistencial, do Ensino Médico, do Serviço Público, e, ademais da Medicina, no Magistério Público, nas áreas de Filosofia, História, Sociologia, além de sua contribuição pessoal, abrangente, no campo da literatura, em prosa e verso, que se torna impossível, no escopo de tempo que nos concede o formato desta reunião, enumerá-las todas, senão resignarmo-nos a destacar algumas dessas contribuições e indicar-vos a existência e fontes de consultas para outras.

O Professor Raymundo Nonato de Almeida Gouveia nasceu à rua dos Perdões – Freguesia de Santo Antonio Além do Carmo- filho de Hermano José de Almeida Gouveia e de Maria Cecília Carvalho de Almeida Gouveia. Fez seu curso primário na Escola Estadual Prof. Arão Carneiro e o curso secundário nos Colégios de Antonio Figueiredo de Souza e Ginásio Ipiranga. Seu pai, funcionário exemplar do almoxarifado do Hospital Couto Maia, com pendor natural para coisas da cultura, manifestado como leituras assíduas, juntamente a sua mãe, souberam imprimir ao seu digno lar um ambiente propício ao desenvolvimento de sua prole.
Dos seus seis irmãos, três também ingressaram na Medicina, sendo que um sucumbiu a surto epidêmico de febre tifóide, enquanto estudante.
Graduou-se em Medicina em 1927, juntamente a outros que vieram, por suas mais do que vitoriosas atuações na profissão médica, conferir àquela turma de 27, um destaque especial, entre todas.
Foram seus colegas naquela turma: Hosannah de Oliveira, José Silveira, Jorge Valente, Bráulio Xavier Filho, Carlos Moraes, Diógenes Vinhaes, Antonio Simões, Octacílio Lopes, Luiz Rogério de Souza, Vivaldo Palma Lima, Thales de Azevedo e outros.
Imagine-se o quanto pode, numa turma assim constituída por preclaras figuras, catalisar-se o gosto pela Ciência e as Artes, pela exposição a Professores do quilate de Pirajá da Silva, Couto Maia, Estácio de Lima e outros.
Mas, como disse o primeiro Acadêmico da História, Platão, “A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento”.

Consoante o vigente à época, em que muito do básico havia ainda por se descobrir, e onde a prática médica era exercida em bases algo empíricas, e muito fundamentadas em experiências e concepções pessoais, decidiu-se o Professor Almeida Gouveia por utilizar o seu conhecimento, de fundamentação humanística, em um direcionamento amplo que envolveria quase todos os campos da atenção médica de então.
Aplicou-se aos campos da Obstetrícia, Puericultura, Clínica Geral, Pediatria e Saúde Pública, em todos com grande distinção, como pode ser atestado por suas conquistas em cada área.
Assim, fez 3 concursos de títulos e provas para obtenção do título de Docência Livre em áreas diversas, sendo sempre aprovado com distinção:-Em 1934, para Docente Livre de Clínica Obstétrica; em 1949, para Clínica Pediátrica e Higiene Infantil; e, em 1959, a tese “Promoção de Saúde Materna” para Docência Livre de Higiene e Medicina Preventiva.

Em 1944 submeteu-se a concurso para a carreira de Médico Puericultor do Ministério de Educação e Saúde (Departamento Nacional da Criança) no Rio de Janeiro, sendo aprovado em 1º. lugar dentre os 50 candidatos, onde figuravam chefes de serviço e diretores do próprio Departamento Nacional da Criança.
Seu apego às coisas da Bahia o impediu de assumir a função. Foram intensas as suas atuações profissionais destacando-se:
Em Medicina: prática assistencial em Obstetrícia e Pediatria; desempenho das funções de: Docente do Serviço Obstétrico, Assistente Honorário da Clínica Pediátrica, e Assistente Voluntário da Clínica Ginecológica, todos esses cargos na Faculdade de Medicina da UFBA, e, em épocas distintas, de Médico efetivo do Departamento de Saúde da Bahia, Diretor (chefe) do Serviço de Assistência Social do SESI, Diretor e Vice-Presidente da Legião Brasileira de Assistência e de Médico Puericultor do Ministério da Saúde.

Em Educação: Professor Catedrático de Puericultura e Higiene Geral e Escolar do Liceu Bahiano e do Ginásio São Salvador, Professor concursado de Sociologia Geral do Colégio da Bahia, Professor Titular da Universidade Católica de Salvador, e Diretor Geral do Departamento do Departamento de Educação da Bahia.
Tais atividades fizeram-no merecedor da honra de ter seu nome perpetuado na Escola Estadual de Primeiro Grau Professor Raimundo de Almeida Gouveia no Bairro Castelo Branco.
Teve uma intensa atividade associativa. Foi Fundador, e tornou-se redator, da Revista Médica da Bahia em 1933. Membro fundador da Associação Bahiana de Medicina. Membro fundador e primeiro presidente da Academia Bahiana de Educação.
Membro fundador e presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina durante 29 anos! Membro fundador da Academia de Médicos Escritores. Membro da Academia de Letras Castro Alves.
E, em 26de abril de 1974, aos 67 anos, assumiu a cadeira 36, da Academia de Medicina da Bahia, solenidade em que foram também empossados os Acadêmicos Valter Afonso de Carvalho, Adroaldo Soares de Albergaria, Eduardo Dantas Cerqueira e Antonio Jesuíno dos Santos Neto.

Como orador escolhido por seus pares para a ocasião, proferiu belíssima página, doutrinária em muitos aspectos.
Deixou-nos um legado de extensa e variegada produção. Foram mais de vinte livros publicados compreendendo Medicina, Educação, Literatura e Poesia, destacando-se, nas respectivas áreas: “Puericultura Social” de 1947, “Promoção da Saúde Materna” de 1960, e “Saúde para Desenvolvimento” que serviram de elementos de estudos para programas de ações sociais do governo.
Em literatura, fase que caracterizou sua atuação nos anos 60 e 70, distinguiu-se, máxime, , como biógrafo sendo desta época produções como “Castro Alves, Cavaleiro Audaz da Liberdade”, “Olavo Billac, Cavaleiro do Amor Insatisfeito” , “Pethion de Villar,
Cavaleiro do Sonho e do Ideal”, “Oposição e Defesa de Castro Alves”. Ao lado de livros que refletem profunda pesquisa sociológica, como “Folclore Regional Médico na Bahia”, “Folclore-Religião e Medicina” , obras estas de consulta obrigatória para estudiosos do assunto.

Apresentava especial interesse na obra de Castro Alves, tornando- se reconhecida autoridade no assunto.
Tal era o seu fascínio pela poesia de Castro Alves que, segundo depoimento de sua queridíssima filha, a Professora e Bacharela em Direito Celeste Hermana de Almeida Gouveia, o enlevo demonstrado pelo Prof. Almeida Gouveia, durante proclamação transmudada dos poemas de Castro Alves, se constituía na única demonstração de discreto ressentimento de sua amantíssima esposa Angel, por, somente neste momento, sentir-se levemente preterida em suas atenções.
Os anos 80 encontraram-no em fase de ainda maior reflexão e poesia, voltada para aquela que foi, na já então longa caminhada, sua fiel companheira, musa inspiradora de todas as suas ações, celebrada nos livros “Musa Tardia”, “Musa Impertinente”e “Musa Cativa”.

Ademais, registram-se numerosos artigos, mais de 400, publicados em vários periódicos ou jornais, de cunho o mais abrangente. Percebe-se em alguns desses, uma defesa apaixonada da preservação deste prédio do terreiro, sendo dos primeiros a se engajar decididamente na luta pela restauração de sua, enfaticamente proclamada, querida Faculdade de Medicina da Bahia.
O homem é produto do meio em que vive, havendo aqueles que são capazes de, por sua ação e determinação, produzir substanciais mudanças ao seu redor.
Raymundo Nonato Almeida Gouveia recebeu os benefícios de nascer de família proba, e fecunda em intenções. Teve a felicidade do seu destino se cruzar com o de Angel Midlej, contraindo matrimonio, ambos ainda muito jovens, ela com 15 e ele com 22 anos de idade, para a construção de uma modelar união de 65 anos, de constante e calma felicidade, posto que, “a água corre tranqüila quando o rio é fundo”.
O casal teve 4 filhos: Maria Cecília de Almeida Gouveia Maron –Pedagoga; Celeste Hermana de Almeida Gouveia- Pedagoga e Bacharela em Direito; Raymundo Nonato de Almeida Gouveia Filho–Bacharel em Direito, falecido prematuramente em acidente de veículo e Antonio Carlos de Almeida Gouveia- Bacharel em Direito.

Vários netos e bisnetos compõem sua prole ilustre.
Tive a oportunidade de conhecer o Professor Almeida Gouveia em 1992, e pelos 2 anos subseqüentes pude recebê-lo em meu consultório, por algumas vezes, quando o mesmo acompanhava familiar seu.
Deparei-me com um senhor que transparecia segurança e firmeza de atitude, mesmo diante de possíveis adversidades.
Ao mesmo tempo afável no trato com o colega mais jovem, presenteou-me com uma coletânea de livros de sua lavra, vários, de uma só vez. Chamou-me a atenção o fato de que cada um, isoladamente, continha uma dedicatória própria, revelando-me assim a natureza esmerada do seu autor.

Procurei perscrutar-lhe os pensamentos e sentimentos traduzidos nos seus escritos.
Identifiquei no seu extraordinário discurso de posse nesta Academia que ele estivera atento ao que nos ensina Fernando Pessoa, de que: “O perfeito é desumano, porque o humano é imperfeito” e preferiu, como Farid, considerar que:- “Os atos de bondade, de amor e abnegação devem ser gravados na rocha para que todos aqueles que tiverem oportunidade de tomar conhecimento deles, procurem imitá-los. Ao contrário, porém, quando recebemos uma ofensa, devemos escrevê-la na areia, próxima as águas para que desapareça, levada pela maré, a fim de que ninguém tome conhecimento dela e, acima de tudo para que qualquer mágoa desapareça prontamente no nosso coração”.

Assim, dois pequenos reparos são registrados em seu discurso de posse, ao tempo em que, logo em seguida, os resvalou para o plano da compreensão.
Assim iniciou o seu discurso: “Penetro, grave e a passos lentos, os portais grandiosos desta casa de ciência, vindo por um caminho alongado, de estrada sem atalhos, qual a do mérito e da decência de costumes, de quem, quase obstinado, cumpria uma determinação. E chego, como um peregrino que traz , na alma, a satisfação dos simples e, na memória, uma porção de lembranças amenas e algumas verdades amargas, estas já perdido o travo, agora, pelo gozo da singular ventura ou pela compreensão de que elas, as amargas, também, compõem a vida e servem de fundo às que são doces e suaves”.

Referia-se a uma longa espera para sua entrada na Academia, sonho almejado de há muito e, por certo, postergado por razões meramente burocráticas, posto que ninguém de maior valia para tal distinção.
Numa outra passagem disse : “... houve, só para mim, por singular desígnio, uma caprichosa transmudação, da cátedra de ensino, que eu persegui, em cadeira simbólica”. Referindo-se à impossibilidade de alcançar a almejada cátedra.
Mas, conclamou: “O espírito pode muito mais do que as mãos realizam”.

E todas as realizações que já lhes mostrei demonstram, confirmam, o que este espírito privilegiado foi capaz de fazer, contribuindo para o meio e seus semelhantes.
De um contemporâneo seu ouvi o registro de tratar-se de “uma das mais prodigiosas memórias de que se tem notícia”.
De sua filha Celeste, dedicadíssima à memória do saudoso pai, colhi o depoimento de que “sua personalidade magnânima viu-se repartida, em suas próprias palavras, nos misteres de servir à causa da Medicina e do Ensino, devotando-se igualmente a ambas”.
Da leitura de sua poesia, depreende-se o extraordinário amor dedicado à sua esposa, que, pela longa convivência juntos, serviu para amalgamar a ambos num só caráter.
De um dos seus netos, o professor Raymundo Gouveia Neto, retiramos parte de sua saudação ao avô, que revela, com sensibilidade, um lado pouco explorado da vida dos grandes homens- ... “E é este homem que precisa ser descoberto nas entrelinhas de seus sonetos, trovas e haicais. Porque, nem ali onde o sentimento era mais intenso, nem ali onde o acadêmico, o doutor e o mestre cediam lugar ao poeta e a razão perdia a batalha para a emoção, nem ali o ‘velho’ conseguia abrir a guarda e se mostrar por inteiro, com todas as fraquezas e contradições do humano que era. Tudo justificável: ele queria ser exemplo, ele queria ser modelo, referência. Inconfesso, mas era assim. Queria carregar o mundo em suas costas, como fazia com a gente, subindo as escadas do velho sobrado.

Ao lado de inúmeras qualidades, talvez este tenha sido seu maior defeito.
Agora, para conhecê-lo de fato, precisamos trazê-lo de volta à luz através de sua poesia. Para descobri-lo, talvez seja necessário fazer uma espécie de parto literário, de modo análogo ao que ele fez a vida inteira com tanta e tanta gente. Gente que já se foi, gente que ainda está por aí, ensinando, pesquisando, medicando, transformando vida em poema. Gente que o admira e tem como referência, assim como ele o queria em segredo. Infelizmente, dessa gente toda, quase ninguém pôde vê-lo se esbaldar ao
levantar de um cochilo e, diante do espelho, dar de cara com o Doutor Gouveia de “maria-chiquinha” nos cabelos (colocado por sua neta durante o cochilo). Infelizmente, dessa gente toda, quase ninguém pode saber como é o mundo visto do alto de suas costas”.
Com que acerto se determina que novos acadêmicos tenham como preceito estatutário fazer a exaltação dos que o antecederam na Cadeira.
Invariavelmente, e este foi sem dúvidas o meu caso, o estudo dessas figuras notáveis, reforça o sentimento no novel acadêmico, de respeito e admiração pelo que fizeram, assim como o desejo quase incontido de seguir-lhes o ensinamento.

Digníssimos Acadêmicos,
Sabeis vós, por experiência própria, o enlevo que se apossa daquele que aqui se apresenta, neste momento.
Reflito, com o entendimento de que este é um especialíssimo momento de minha vida, do quanto sou grato a Deus, por ser filho de quem sou, vir da família de que venho, ter a família que tenho, e ter podido seguir os passos que me foram destinados.
Fosse-me dada a chance e não os mudaria em nada.
Sou, em minha vida de Médico, o resultado de muitas influências, das quais tive a ventura de ser bem aquinhoado.
Aqui mesmo, entre vós, Srs. Acadêmicos, com a quase totalidade dos quais tive a oportunidade de interagir em algum momento da minha vida, percebo ter, por diferentes formas e maneiras, recebido ensinamentos que me foram úteis, sempre em benefício do meu desenvolvimento.
Detalhá-los todos, individualmente, tornar-se-ia demasiadamente demorado.
Acreditem, Srs. Acadêmicos, todos os com quem tive a oportunidade de um contato, dos mais velhos aos mais novos, sou invariavelmente agradecido, pelo que do vosso exemplo e conhecimento, me proporcionaram.
Dos pouquíssimos com quem não tive ainda a oportunidade da convivência, menos que meia-dúzia dentre os 40, anseio por fazê-lo.

Durante toda a minha vida sempre tive a sorte de me relacionar com colegas extraordinários.
Não podendo, como gostaria, referir-me a todos, mas em atendimento a uma questão de foro íntimo, sou impelido a fazer o registro de alguns que foram decisivos para o meu desenvolvimento universitário, manifestando-lhes meu eterno agradecimento.
Na minha fase de formação, na Faculdade de Medicina da UFBA, o Professor Heonir Rocha, de quem fui Interno na Enfermaria da Clínica Terapêutica, figura modelar que influenciou toda a minha geração de estudantes dos anos 60, e assim o fez, para muitas outras gerações.

Na minha formação cardiológica, os Professores William Frankl e Lamberto Bentivoglio, durante os quatro anos de especialização na Filadélfia, e a cujos insistentes apelos para que permanecesse nos Estados Unidos da América, o meu sentimento de brasilidade me impediu de atender.
E, quando do meu ingresso na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, possibilitando-me a criação de uma Cadeira de Clínica no ano de 1979, levado pelas mãos do Dr. Raimundo Perazzo, a figura do Professor Orlando de Castro Lima.
Num momento como este volto meu pensamento ao bondoso Deus e vejo com que privilégio me dotou ao permitir, por onde passei, um intenso convívio com estudantes de Medicina, médicos residentes , colegas no Hospital Santa Izabel, no Hospital Aliança, na Sociedade Brasileira de Cardiologia, além de figuras relacionadas ao ambiente médico.
Ao dedicar-me à Cardiologia pude, durante estes 30 anos, vivenciar profundas mudanças na especialidade.
Vi o surgimento da efetiva abordagem do processo obstrutivo coronariano, por cirurgia, em 1967, com a descoberta de Favaloro, argentino em pós-graduação nos Estados Unidos da América, ou por intervenção percutânea, 10 anos depois, com a descoberta do alemão Gruentzig, na Suiça, revolucionando o tratamento da mais comum das doenças cardíacas dos nossos tempos, a doença
aterosclerótica coronária.

Vi o desenvolvimento de técnicas que permitem a ousadia do acesso à intimidade mais recôndita do coração.
Pude seguir cada passo do desenvolvimento de fármacos que revolucionaram o tratamento das doenças cardiovasculares.
Estou, neste momento, me iniciando nas pesquisas da terapia de regeneração celular, com a grande expectativa de que estaremos iniciando uma nova era da Medicina, com ilimitadas possibilidades de atuação.
E, durante todo esse tempo, com a verificação de que se tem progredido em promover a saúde e melhorar a sobrevida e qualidade de vida do paciente cardiopata.

Que felicidade poder estar envolvido com tudo isso!
Tenho podido constatar a veracidade do que nos ensina Carlos Drummond de Andrade: “Necessitamos sempre de ambicionar alguma coisa que, alcançada, não nos torna sem ambição”.
Senhores acadêmicos, ao me receberem em vosso convívio, conferem-me a responsabilidade de estar à altura deste templo da cultura Médica, e eu, humildemente me curvo à vossa determinação, imbuído do desejo de amar e honrar esta Casa.
 

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