Academia de Medicina da Bahia Scientia Nobilitat
Tamanho da Fonte
Jecé Freitas Brandão
Jecé Freitas Brandão
Titular - Cadeira 20
24/10/2013
20:00
Discurso de Posse na Academia de Medicina da Bahia de Jecé Freitas Brandão

Ilmo. Sr. Prof. Dr. Almério de Souza Machado, digníssimo presidente da Academia de Medicina da Bahia;
Ilmo. Sr. Prof. Dr. Roberto Luis D’Ávila,  presidente do Conselho Federal de Medicina;
Ilmo. Sr. Prof. Dr. José Leite Saraiva, presidente da Federação Brasileira das Academias de Medicina;
Ilmo. Sr. Prof. Dr. Pietro Novelino , presidente da Academia Nacional de Medicina;
Ilmo. Sr. Dr. José Abelardo Garcia de Meneses, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia;
Ilmo. Sr. Prof. Dr. Pietro Novelino , presidente da Academia Nacional de Medicina
Ilmo. Sr. Professor Dr. Antonio Carlos Vieira Lopes, presidente da Associação Bahiana de Medicina;
Ilmo. Sr. Dr. Francisco Magalhães, presidente do Sindicado dos Médicos da Bahia;
Ilma. Sra. Profa. Dra. Lorene Pinto, diretora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia;
Ilma. Sra. Profa. Dra. Maria Luisa Soliani, diretora da Faculdade Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
Ilmo. Sr. Ex-governador e Ministro da Saúde professor Roberto Santos.
Ilmo. Sr. Dr. Jorge Cerqueira, presidente do Instituto de Historia da Medicina e Ciências a fins.

Digníssimos Acadêmicos , confrades  deste Sodalício;
colegas conselheiros do CFM e do CREMEB;
colegas de turma, colegas de especialidade e de trabalho;
clientes, amigos de toda vida, aqui me honrando com suas presenças.Meus familiares, base de tudo, simbolizados na presença de D. Gercy Brandão,
minha mãe, aqui presente;

Minhas senhoras e meus senhores:

Quero expressar minha imensa alegria e sentimento de felicidade por estar vivendo esta noite, na qual tomo posse na gloriosa e honrada Academia de Medicina da Bahia (AMB). Sim, estou realizando um sonho, muito acalentado, por cerca de dez anos.

Conscientemente, o desejo de pertencer à Academia de Medicina da Bahia nasceu quando, no início da década passada, compareci na condição de presidente do egrégio Conselho Regional de Medicina da Bahia à posse, nesta academia, do ex-governador e ministro da saúde, professor Roberto Santos. Que noite memorável! O novel acadêmico foi brilhantemente saudado pelo hoje presidente da Academia de Medicina da Bahia, professor Almério Machado. Já no fim desta solenidade, durante o coquetel, o inesquecível e Emérito membro desta Academia, Prof. Jesuíno Netto, surpreendeu-me e com seu jeito peculiar de falar, disse-me: “Então, companheiro, quero vê-lo aqui na Academia, após seu mandato à frente do Cremeb”. Tal incentivo, vindo do mestre Jesuíno, referência simbólica maior da ética médica na Bahia, tocou-me profundamente e plantou definitivamente este desejo em mim.

O tempo foi passando, eis que se elegeu presidente desta Academia o Prof. Dr. Thomaz Cruz. Homem de perfil ativo, dinâmico e realizador, imprimiu nova fisionomia e vitalidade à academia. Como presidente do Cremeb, fui algumas vezes convidado por ele para participar dessas sessões. Em duas delas apresentei aos acadêmicos os fundamentos teóricos do denominado erro profissional de médico. Noutra oportunidade, fiz uma explanação sobre os novos e complexos dilemas éticos vividos pela classe médica brasileira, derivados de fatores como a judicialização da medicina, a interferência nociva e argentária das operadoras e planos de saúde na milenar relação do médico e seu paciente, e o vertiginoso desenvolvimento da medicina tecnológica com os conflitos relacionados à fecundação assistida, guarda, usos e descartes de embriões não utilizados; a equidade no acesso à sempre cara e desejada tecnologia médica; a ortotanásia; e até reflexões sobre o suicídio assistido. Ainda na gestão do confrade Thomaz Cruz, este, com seu prestígio pessoal, conseguiu financiamento que viabilizou a recuperação física da sede da nossa academia no interior deste prédio histórico, casa da escola médica primaz do Brasil, fundada em 18 de fevereiro de 1808 pelo príncipe regente D. João VI. Foram os confrades Thomaz Cruz, Jesuíno Netto e o Prof. Newton Guimarães (a quem me referirei a seguir) os responsáveis pela minha chegada à Academia. Sou-lhes eternamente grato, pois, sem tais incentivos, não teria ousado candidatar-me a tão honrosa posição.

 Aproveito aqui a oportunidade para agradecer a todos os confrades, que de forma unânime votaram favoravelmente à minha eleição.

Quero também compartilhar com todos os presentes um fato gerado pelo acaso, mas que triplicou a minha alegria em estar vivendo este momento. É que, por coincidência, findo o mandato do presidente Thomaz Cruz, foi eleito à presidência deste sodalício o professor Almério Machado, meu paraninfo de formatura da turma de medicina de 1975 da UFBA. Ainda jovem, vindo recentemente de sua pós-graduação nos Estados Unidos, mas já possuidor  de densa formação em medicina interna e pneumologia. Carismático, extremamente educado e dono de invejável memória, era sempre muito paciente com a natural ignorância dos estudantes. Foi eleito por unanimidade nosso paraninfo. Jamais poderia eu imaginar que, quarenta anos depois, viveria, juntamente com meu então paraninfo, momentos marcantes dessa solenidade, sob sua presidência.

Minhas senhoras e meus senhores:

Neste momento, entendo oportuno recorrer à história para buscar a origem do vocábulo “academia”e suas motivações e finalidades. Para isso, sirvo-me aqui da publicação “Academia Brasileira de Médicos Escritores”, de autoria do professor Helio Begliomini. Consta ser a academia originária da Antiguidade grega, de tantos deuses e de tantas lendas.

                Conta-se que Dióscoros, Castor e Pollux, filhos de Júpiter, desceram à península Ática, em busca da irmã Helena, jovem de estonteante e provocadora beleza, que havia sido raptada por Teseu.

Akademus, herói grego, auxiliou incansavelmente em sua busca e, em função disso, foi premiado pelos deuses com a intocabilidade de seus domínios, que era próximo, particularmente a noroeste de Atenas. Akademus aí foi sepultado, sendo edificado um templo dedicado à deusa da sabedoria e da inteligência – Atena. Em torno deste templo havia o jardim de Akademus, de inexprimível beleza, e, exatamente neste sítio, o filósofo Platão, no ano 387 a.C., reunia-se com seus discípulos para discussões filosóficas, origem de sua renomada Escola, considerada a primeira Academia. Esta, grosso modo, seria a primeira universidade que existiu. Evocando sua descrição mítica, a academia teria também como características a fraternidade, a solidariedade e a lealdade. Os sucessores de Platão continuaram a ensinar na academia, palco de acaloradas discussões sobre dialética, ciências naturais e matemática. Até mesmo estadistas eram ali preparados. Em 529 d.C., todavia, o imperador romano do Oriente, Justiniano I,  determinou o fechamento da academia em Atenas. Marcou-se, assim, o fim da era greco-romana e consolidou-se a entrada na Alta Idade Média, período esse que vai do século V ao século X e é caracterizado basicamente pela desagregação da sociedade antiga e pela formação do sistema feudal.

                Contudo, o que provém da divindade não pode morrer. Passados novecentos anos, as academias ressurgiram com a Renascença, movimento intelectual, artístico e científico dos séculos XV e XVI que preconizava a recuperação de valores e modelos da Antiguidade greco-romana, contrapondo-se à tradição medieval. Surge na Itália e se alastra por toda a Europa, resultando em notório arejamento nas ciências, nas artes e nas ideias.

                A partir da Renascença, a academia passou a significar sociedades ou grupos formados com o intuito lato sensu de cultivar, desenvolver, investigar e divulgar a literatura, as artes e as ciências. Do século XV ao século XVIII, criaram-se em quase todos os países da Europa instituições afins. Em Portugal, as academias caracterizavam-se pelo cultivo das letras e também por preocupações científicas. Entre elas destacam-se a Academia dos Generosos (1647), a Academia dos Singulares (1663) e a Academia das Ciências de Lisboa (1779).

                No Brasil, esta prática acadêmica e associativa de caráter espiritual e cultural teve início com a Academia Basílica dos Esquecidos, fundada pelo vice-rei do Brasil, Vasco Fernandes de Menezes, aqui na Bahia, em 1724. A partir daí surgem várias outras academias; entre elas destaco a Academia Nacional de Medicina, fundada em 1829, em pleno Brasil imperial, e a Academia de Medicina de São Paulo, em 1895. Já a nossa Academia de Medicina da Bahia foi fundada em 1958.

Feito este apertado e sucinto retrospecto histórico, passo a revelar aos presentes os dados biográficos mais significativos e os panegíricos do Patrono e do último ocupante da cadeira n° 20 deste sodalício, a qual passo a ocupar doravante. São eles, respectivamente, o Prof. Dr. Flaviano Innocencio da Silva e o ilustre Prof. Dr. Newton Alves Guimarães, aqui presente nesta solenidade, que ascendeu a Emérito desta Academia.

Panegírico ao Prof. Dr. Flaviano Inocêncio da Silva (Flaviano Silva),

Nasceu em 9 de setembro de 1880, em Salvador.

Diplomou-se em Farmácia, em 1897, pela Faculdade de Medicina da Bahia. No mesmo ano, apresentou-se como voluntário para servir no Hospital de Sangue, instalado nesta Faculdade, durante a guerra de Canudos.

Colou grau de doutor em Medicina, em 1900.

Em seguida, fixou-se no sul da Bahia, exercendo a profissão em Ilhéus, Almada e Itabuna.

Depois, clinicou em Jequié e, uma vez mais, em Almada.

Em 1905 foi para o Rio de Janeiro, e da capital da República retornou para Salvador.

Depois de algum tempo em Salvador, foi para Esplanada. Naquela cidade, instalou uma farmácia e exerceu a clínica durante dois anos.

Deixando Esplanada, seguiu para Ponta Grossa, no Paraná. Foi nomeado médico da Estrada de Ferro São Paulo−Rio Grande do Sul.

Pouco a pouco ficou definida sua inclinação para a pesquisa dermatológica. Comprou um microscópio e começou a estudar as parasitoses cutâneas.

Estabilizado em sua vida profissional, regressou para Salvador a fim de dar assistência à sua genitora, recém-viúva.

Em 1920, seguiu para a Europa, matriculando-se no curso de Dermatologia e Venerologia do Hospital Saint Louis, oportunidade em que foi aluno de consagrados mestres da Faculdade de Medicina de Paris.

Regressando da Europa, submeteu-se a concurso para a vaga de Professor substituto da cadeira de Dermatologia e Sifilografia, conquistando a cátedra.

Em 1924 começou a trabalhar no Hospital Santa Izabel, onde permaneceu até sua aposentadoria, em 1950.

Pesquisador incansável, publicou cerca de cento e setenta trabalhos científicos, alguns de grande repercussão, como, por exemplo, os que se referem à leishmaniose difusa (ou hansenoide) e à forma melanodérmica do lúpus eritematoso.

De sua vasta bibliografia constam publicações sobre blastomicoses, esporotricose, actinomicose, granuloma inguinal, pinta, bouba, pelagra, ainhum e vários outros assuntos ligados à dermatologia tropical. Seu nome é um dos raros de autores brasileiros que figuram no clássico Atlas publicado em Budapeste quando do 1º Congresso Internacional de Dermatologia, o CORPUS ICONUM MORBORUM CUTANEORUM, de Nekan, bem como na primeira edição da bíblia da dermatologia alemã, o Tratado de Jadassohn.

Foi o segundo especialista a receber a distinção de sócio honorário da Sociedade Brasileira de Dermatologia, tendo sido precedido, no particular, apenas pelo eminente cientista Adolfo Lutz. Recebeu a medalha Gaspar Viana pelos seus estudos sobre leishmaniose; foi professor Emérito da Faculdade de Medicina da Bahia.

Pertenceu a várias instituições científicas e culturais e recebeu diversos títulos e homenagens.

O professor Newton Guimarães, conviveu com o professor Flaviano e o substituiu na cátedra de dermatologia da FAMEB e também na cadeira nº 20 da Academia de Medicina da Bahia. Referindo-se ao patrono dessa cadeira, disse: “Do mestre Flaviano tudo que dele se disser há de estar sublinhado pelos traços marcantes de sua personalidade: a bondade e a honestidade”.

Foi, indubitavelmente, um dos vultos mais importantes da dermatologia em nosso país, além de uma personalidade marcante e excepcional dos séculos XIX e XX.

(Panegírico ao Prof. Dr. Newton Guimarães)

Cumprindo o rito oficial, devo apresentar o panegírico à vida e obra do último ocupante da cadeira 20 da AMB, Prof. Dr. Newton Alves Guimarães, que meritoriamente ascendeu à condição de Emérito desta Academia. 

Nasceu em Salvador, em 17 de outubro de 1920. Completou, na semana passada, 93 anos de idade.

Graduou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (1943) e em Farmácia (1946). O professor Newton Guimarães dedicou 46 anos de sua vida às atividades didáticas, atuando em várias instituições de ensino de 1944 a 1991.

Recém-formado e já denotando a vocação de professor notável que se tornaria no futuro, foi professor-assistente da disciplina de Microbiologia da Faculdade de Medicina da Bahia (FAMEB). Simultaneamente, ocupou por dois anos a função de professor titular interino de Microbiologia da escola de Farmácia, anexa à FAMEB.

Com a fundação da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP), na década de cinqüenta do século passado, logo foi contratado para ocupar a disciplina de Microbiologia, sendo seu Titular por três anos, quando se afastou desta disciplina para se tornar Professor Titular de Dermatologia da EBMSP. Simultaneamente, tornou-se Professor Titular de Dermatologia da UFBA, mediante brilhante concurso público, quando defendeu tese que versou sobre o problema da resistência na lepra, função que exerceu de 1952 a 1986, quando então se aposentou formalmente naquela universidade.

Em 1957, seu conceito universitário já ultrapassara as fronteiras da Bahia, tanto que foi distinguido com o convite para reger a Cadeira de Dermatologia da Escola Paulista de Medicina, função que desempenhou naquele ano, afastando-se para cumprir bolsa de estudos por dois anos na Europa, oportunidade em que frequentou os Serviços do Prof. Xavier Vila Nova, em Barcelona, J. J. Kimmig, em Hamburgo, e do professor Marchionini em Munique. Posteriormente, no ano de 1967, cumpriu estágio na Clínica Dermatológica da Universidade de Lisboa, no serviço do professor Juvenal Esteves.

Entre as contribuições do Professor Newton Guimarães contam-se as primeiras publicações, no país, sobre a imunologia da leishmaniose tegumentar americana, estudo e descrição pioneira da dermatose causada pela picada de mosquitos culicoides (maruins), estudos sobre a etiopatogenia e localizações iniciais das lesões histológicas da “ceratoderma marginal palmar” com a demonstração de sua identidade mediante as “placas de degeneração colágena” de Brooks; bem como trabalho sobre lúpus eritematoso profundo e esporotricose.

Desempenhou intensa atividade em congressos no país e no exterior, sendo presidente da Sociedade Brasileira de Dermatologia e da Associação Bahiana de Medicina.

O Professor Newton Guimarães sempre soube dividir bem o seu tempo e, ao lado das citadas atividades universitárias, forjou uma muitíssimo bem sucedida carreira assistencial. Dono de até hoje, inigualável clientela pessoal, continua em plena atividade clínica. Criou em 1967 o IDAB, Instituto de Dermatologia e Alergia da Bahia e, em 1986, fundou a Clínica Professor Newton Guimarães, na qual lidera numerosa equipe de especialistas da área.

Poliglota, o Professor Newton domina bem o espanhol, o francês, o inglês e o alemão.

Aqui, nesta altura desse relato, cometerei algumas inconfidências. Dr. Newton honra-me com a distinção de ser um dos seus médicos. Vai raramente ao meu consultório, pois, homem de muito prestígio com os deuses, adoece muito pouco. Nesta condição, pude observar aspectos de sua personalidade marcante: culto, probo, carismático, atualizado, bem humorado e dono de uma prosa agradabilíssima. Homem de fé, devoto de Nossa Senhora de Aparecida e assíduo frequentador da Paróquia Católica do Jardim Brasil, na Barra Avenida, onde participa da administração e  atende gratuitamente no ambulatório médico beneficente daquela igreja.

Pensando no professor Newton e em sua vida, lembrei-me de uma fala do nosso inesquecível jornalista baiano Jorge Calmon, expressando-se sobre a condição humana: “há homens que se tornam instituições. São poucos. Constituem exceções. A regra geral é o bitolamento medíocre dos inumeráveis componentes do rebanho humano, que a lei da vida vai tangendo, em marcha entre o nascimento e a morte”. Newton Alves Guimarães é uma destas raras personalidades que se tornam, mesmo em vida, uma instituição. Portanto, neste momento, peço a todos que, numa reverência a esse mestre e sábio da medicina brasileira, o saudemos com uma calorosa salva de palmas.

Minhas senhoras e meus senhores:

                Finalizando este já alongado discurso, tenho a dizer que, a par da profunda felicidade pessoal por estar realizando o sonho de pertencer a este sodalício, composto pelos expoentes maiores da medicina baiana, encontro-me invadido por profunda preocupação com a imagem pública da medicina e com o futuro dos médicos brasileiros. Identifico, dentre outros, dois fatores determinantes dessa crise existencial que nos atinge. De um lado, nunca, em tempo algum, assisti a tanta agressão, desrespeito e difamação pública, perpetradas pelo Executivo federal contra os médicos brasileiros, que, numa jogada publicitária, os escolheu como culpados pelo caos instalado no Sistema Público de Saúdedo país, o SUS. Urdiram um plano denominado Programa “Mais Médicos”, completamente improvisado e feito a toque de caixa, alardeando-o como solução para o SUS. Premido pela necessidade de responder aos surpreendentes movimentos reivindicatórios de rua que assolaram o país a partir do mês de junho passado, tendo o apelo por um SUS de qualidade como uma das suas principais bandeiras, o Governo, ao criar o “Mais Médicos”, buscou desviar o foco dos reais problemas que paralisam o SUS, além de atender a objetivos eminentemente eleitorais, dentre os quais tornar popular o desconhecido ministro Padilha, escalado pelo partido governista a candidato a governador do estratégico estado de São Paulo.

 Na verdade, de longe, o problema central que impede o funcionamento do SUS é o seu subfinanciamento, que foi, de governo a governo, instalando-se e se aprofundando. Enquanto na década de oitenta do século vinte, o Executivo federal bancava 76% do custeio da saúde pública do país, atualmente sua participação se reduziu a 46%. Vejam, senhoras e senhores, o gasto do governo federal caiu de 76% para 46%. Hoje, o percentual de recursos da União aplicado no financiamento da saúde pública não passa de 4% do PIB, cifra gritantemente inferior ao quanto gastam os demais países que têm sistema público universal semelhante ao SUS, e que desembolsam entre 8%e 12% do PIB. Como se constata, duas a três vezes mais do que o que gasta o Brasil. O fato é que o governo brasileiro está empregando, na saúde de seu povo, bem menos recursos, até mesmo quando se compara a seus vizinhos mais pobres, como Argentina, Uruguai, Chile e Costa Rica. Dessa crônica e progressiva carência de recursos, derivam as demais precariedades do SUS, sobretudo a média complexidade que, insuficiente ou inexistente, trava o SUS por todo o país.

Entretanto, senhoras e senhores, a crise que atinge a medicina hoje e que realmente mais me preocupa porque, essa sim, é patente, pois intrínseca à prática clínica de hoje: é a crise em torno das dificuldades de se disponibilizar as condições essenciais para o exercício clínico diário, na busca de excelência e agilidade no alívio e cura dos sofrimentos humanos, eterna razão de ser da medicina.

A medicina, que era simples no passado, pouco eficaz e razoavelmente inócua, é agora complexa e muito eficaz porque cura ou muda favoravelmente o curso da maioria das doenças que podem acometer os seres humanos, mas se tornou uma prática potencialmente perigosa.

Deveras, tem-se que os conhecimentos técnico-científicos incorporados à medicina nos últimos cinquenta anos foram maiores e mais importantes do que aqueles incorporados nos últimos cinquenta séculos. Não é coincidência o fato de que a expectativa de vida, que era de quarenta anos no século XIX, aumentou para oitenta anos em muitos países do mundo.

Mas, para que essa sofisticada e complexa medicina clínica de hoje possa ser exercida adequadamente, é necessário um ambiente físico apropriado, tempo disponível a cada atendimento ou consulta e um profissional muito bem qualificado, dotado de sólidos conhecimentos técnicos e de humanidades. Deve este prescrever tratamentos baseados em evidências científicas, porém adequados à singularidade de cada pessoa/paciente. Sim, cada pessoa sofre e expressa suas dores e desejos de forma diferente e única. Esta realidade clínica, própria da condição humana, impõe à medicina uma prática eternamente ciência e arte, artesanal e pessoal, caso a caso. Senhores, trata-se de uma prática analógica, num mundo na sua integralidade digital. Além disso, o cidadão/paciente de hoje, consciente dos fundamentos civilizadores da dignidade e dos direitos humanos, exercitando princípios de autonomia e justiça, anseia por participar ativamente, junto a seu médico, na programação dos cuidados à sua saúde. O paciente descobriu-se dono do seu corpo e do seu destino e quer participar ativamente das tomadas de decisões acerca do seu tratamento.

De outro lado, com a internet, o paciente, pela primeira vez na história humana, passou a ter acesso ao conhecimento médico. Antes, este saber era monopólio dos profissionais de saúde. Agora, democraticamente, todos têm possibilidade de acessar informações técnicas detalhadas sobre as possíveis razões do seu adoecimento e acerca das possibilidades de tratamento.

Portanto, o médico, depois de 2.400 anos de monopólio deste conhecimento, depara-se, diariamente, com este novo paciente, repleto de informações e dúvidas, ansioso por esclarecimentos e aprofundamentos, visando à separação do joio do trigo, e buscando junto a seu médico de confiança a melhor solução possível para seus problemas de saúde.

Este novo cenário exige uma nova prática clínica voltada para a redução da assimetria histórica da relação médico-paciente. Mais do que nunca, a relação médico-paciente deve ser harmoniosa, marcada pela reciprocidade (com direitos e obrigações tanto por parte do paciente quanto do médico) e equilibrada de forma que ambos busquem o bem um do outro e se respeitem em suas autonomias. Deliberando juntos, em busca do alívio ou cura do adoecimento motivador do encontro clínico.

Este novo paciente, forjado num mundo secular, globalizado e consumista, exige um profissional capaz que leve em conta, além dos dados biológicos, as influências culturais, sociais e psicológicas de cada paciente, aspectos esses essenciais para a compreensão dos sintomas. Hoje, tão importante quanto o diagnóstico etiológico é o diagnóstico de preferências de cada paciente, para a definição compartilhada do tratamento ideal àquela pessoa/paciente e, claro, a obtenção de um desfecho clínico que seja bom para ambos.

Penso que as faculdades de medicina no Brasil e no exterior, na sua quase totalidade, não estão aparelhadas para formar este novo e sofisticado profissional. As academias e as entidades médicas deverão exercer papel fundamental no sentido de mudar este cenário formador inadequado, mediante pressões e cobranças aos sucessivos governos. Aliás, este sempre foi o papel das academias: fazer ciência transformadora da realidade para favorecer a felicidade das pessoas.

Quanto às agressões e difamações que os médicos brasileiros vêm sofrendo por parte do Executivo federal nesta conjuntura, o tempo irá aos poucos revelando os reais motivos subjacentes. Não se pode enganar a todos por todo o tempo. Quem viver verá.

Os governos e os políticos passarão. A medicina e os seus médicos permanecerão. A medicina é eterna. Enquanto houver Homo sapiens perambulando na superfície da terra, haverá sempre, entre eles, aqueles vocacionados para exercer o sempre honrado papel de aliviadores e curadores dos sofrimentos humanos. 

Muito obrigado.

Jecé F. Brandão

Academia de Medicina da Bahia
Praça XV de novembro, s/nº
Terreiro de Jesus, Salvador - Bahia
CEP: 40026-010

Tel.: 71 2107-9666
Editor Responsável: Acadêmico Jorge Luiz Pereira e Silva
2019 - 2024. Academia de Medicina da Bahia. Todos os direitos reservados.
Produzido por: Click Interativo - Agência Digital